Isaura, Uma Caminhante Atemporal

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quarta-feira, 16 de setembro de 2020



"O Conselho das bruxas
Ou: sobre ser Malévola e ser Geni e ser você  e ser eu"






Para todas as minhas amigas
E àquelas que nos ensinaram chamar
Inimigas
A todas que sabem
e a todas que não sabem
Que somos todas, todas queimadas
Assediadas
Violentadas e mortas
Dia a dia
Rotina de ser bruxa
Ser Geni
Somos todas
e uma só.
A nós.

O Conselho estava reunido. Todas ansiavam por mais uma reunião maquiavélica sobre o que fazer com a Humanidade lá fora. Riam, riam alto, gargalhada que ecoava no pé direito duplo do apartamento no centro da cidade. Na rua, a lua cheia brilhava, holofote para as sombras de gatos pretos que perambulavam nas calçadas ainda úmidas da chuva que caíra durante o dia.

Fazia um friozinho gostoso, desculpa maravilhosa para que elas entornassem taças de vinho tinto. Ou sangue. No fogão, uma grande panela soltava fumaça para todos os lados enquanto uma delas mexia e remexia seu conteúdo com uma grande colher de pau.

- Que cheiro maravilhoso!, exclamavam. E riam, riam alto.

Havia tantas delas que é difícil enumerá-las e descrevê-las uma a uma. Eram baixas, altas, magras, gordas, negras, brancas, amarelas. Verdes? É, talvez tivessem coloridas. Eram bonitas, feias, trans, cis, com longos e curtos cabelos. Tinham seios, ou não. Mas todas tinham peito. Peitavam. Riam, riam alto. A Humanidade, lá fora.

- Briguei com meu namorado, não queria que colocasse meu vestido predileto.

- Fui fazer entrevista de emprego hoje. Chamaram o cara ao meu lado, com menos experiência.

- Pediram para que alisasse meu cabelo para atender um cliente.

- Alertei sobre problemas internos da corporação, me chamaram de louca.

- Pediram para eu não ser tão nervosa.

- Meu marido disse que nunca acho graça de nada.

- Minha irmã foi estuprada pelo namorado.

- Chamaram-me pelo nome do “meu falecido”. Me acham homem.

- Acham que não sou a pessoa ideal para o cargo.

- Fizeram piada sobre assédio sexual no grupo dos amigos do colégio.

- Vazaram um vídeo íntimo de uma vizinha. Ela acha que foi o ex.

- Minha empregada foi ameaçada de morte pelo marido. Ele apontou uma arma para ela.

- Minha mãe foi traída por meu pai. Ele pediu desculpas, ela aceitou. Os dois estão comemorando aniversário de casamento.

- Meu irmão pode fazer faculdade de Engenharia. Eu, não.

- Minha sogra tem que arrumar a casa depois de voltar do trabalho. Meu sogro, não.

- Me disseram que eu exagero. Que eu quero aparecer demais.

- A maquiagem. Minha maquiagem é muito exagerada, falaram.

- Para mim, disseram que devia me maquiar.

- Meu colega de trabalho falou que eu devia emagrecer.

- Meu chefe disse que não devo falar palavrões.

- Falaram que devia colocar silicone nos seios para ser mais proporcional.

- Me alertaram que deveria tirar um pouco dos seios, porque “ficam chamativos demais”.

- Reclamaram que fui de sapato baixo para uma reunião com o presidente da empresa.

- Minha família disse que sou reclamona.

- Meu pai disse que sou lésbica porque quero aparecer.

- E minha mãe disse que meu cabelo curto é muito masculino.

-Minhas primas riram porque não faço as unhas toda semana.

-Voltei da licença-maternidade e fui demitida.

Riam, riam alto.

- Fecha a perna, menina.

- Se fosse menino, já tinha conseguido.

- Homem sempre cozinha melhor que mulher, né?

- Só podia ser mulher.

- Dirige mal que nem mulher.

- Burra.

- Louca.

- Vadia.

- Filho da puta. Puta.

- Mereceu.

- Saia curta demais.

- Ela que escolheu.

- Gosta.

- Mulher de malandro.

- Tá chorando que nem menininha.

- Larga de ser mulherzinha.

- Mulher não consegue fazer isso.

- Não é forte o suficiente.

- Gorda.

- Fecha as pernas.

- Fez e agora quer tirar.

Bruxas!

Séculos e séculos passados. Presentes. Muitas delas queimadas na fogueira. Outras, incendiadas na internet. Na empresa, na família. Mas, geração após geração, um grande segredo foi sendo transmitido, começou com um pequeno Conselho, reunido. Foram contando para poucas — que, aos poucos, iriam esparramando a palavra. Riam, riam alto.

E foi, e é, e será assim. Encontro após encontro, decidem como poderão destruir seu inimigo. Que é onipresente, grandioso, voz de trovão. Interno, inteiro. Raiz difícil de arrancar. Tentam descobrir o feitiço para que, um dia, não precisem mais rir para não chorar. Serão, assim, respeitadas, poderão respirar. Um dia, um dia serão quem gostariam, quem são, quem lutavam para ser. Seriam felizes para sempre.

Mas a Humanidade, lá fora.

Já tarde da noite, garrafas de vinho ao chão, a lua ainda espiã pela janela, uma delas pegou um livro, um grande livro escrito, claro, por uma delas: Elisa Lucinda, bruxa negra dos olhos verdes. Emocionada, berrava para todo o Conselho ouvir verso a verso. Palavra a palavra.

Lua nova demais

Dorme tensa a pequena
sozinha como que suspensa no céu
Vira mulher sem saber
sem brinco, sem pulseira, sem anel
sem espelho, sem conselho, laço de cabelo, bambolê
Sem mãe perto,
sem pai certo
sem cama certa,
sem coberta,
vira mulher com medo,
vira mulher sempre cedo.
Menina de enredo triste,
dedo em riste,
contra o que não sabe
quanto ao que ninguém lhe disse.
A malandragem, a molequice
se misturam aos peitinhos novos
furando a roupa de garoto que lhe dão
dentro da qual menstruará
sempre com a mesma calcinha,
sem absorvente, sem escova de dente,
sem pano quente, sem O B.
Tudo é nojo, medo,
misturação de “cadês.”
E a cólica,
a dor de cabeça,
é sempre a mesma merda,
a mesma dor,
de não ter colo,
parque
pracinha,
penteadeira,
pátria.
Ela lua pequenininha
não tem batom, planeta, caneta,
diário, hemisfério,
Sem entender seu mistério,
ela luta até dormir
mas é menina ainda;
chupa o dedo
E tem medo
de ser estuprada
pêlos bêbados mendigos do Aterro
tem medo de ser machucada, medo.
Depois menstrua e muda de medo
o de ser engravidada, emprenhada,
na noite do mesmo Aterro.
Tem medo do pai desse filho ser preso,
tem medo, medo
Ela que nunca pode ser ela direito,
ela que nem ensaiou o jeito com a boneca
vai ter que ser mãe depressa na calçada
ter filho sem pensar, ter filho por azar
ser mãe e vítima
Ter filho pra doer,
pra bater,
pra abandonar.
Se dorme, dorme nada,
é o corpo que se larga, que se rende
ao cansaço da fome, da miséria,
da mágoa deslavada
dorme de boca fechada,
olhos abertos,
vagina trancada.
Ser ela assim na rua
é estar sempre por ser atropelada
pelo pau sem dono
dos outros meninos-homens sofridos,
do louco varrido,
pela polícia mascarada.
Fosse ela cuidada,
tivesse abrigo onde dormir,
caminho onde ir,
roupa lavada, escola, manicure, máquina de costura, bordado,
pintura, teatro, abraço, casaco de lã
podia borralheira
acordar um dia
cidadã.
Sonha quem cante pra ela:
“Se essa Lua, Se essa Lua fosse minha…”
Sonha em ser amada,
ter Natal, filhos felizes,
marido, vestido,
pagode sábado no quintal.
Sonha e acorda mal
porque menina na rua,
é muito nova
é lua pequena demais
é ser só cratera, só buracos,
sem pele, desprotegida, destratada
pela vida crua
É estar sozinha, cheia de perguntas
sem resposta
sempre exposta, pobre lua
É ser menina-mulher com frio
mas sempre nua.

Lágrimas e lágrimas escorrem na sala de pé direito duplo.

- Maravilhoso! Maravilhoso!, exclamam.

E começam a repensar sua condição. Condição difícil e diária. Ser bruxa. Chapéus invisíveis.

- Venham, meninas. A sopa já está pronta. Sopa acalenta.

Riram, riram alto. Sentaram-se à mesa e serviram-se. Unidas, doídas, fortes. Mulheres. A Humanidade, na verdade, aqui dentro.


https://medium.com/cronicas/o-conselho-das-bruxas-cf710325bc22


Amei.
Gratidão.
Isaura Lamat Uaxac kin 8 de Sirius









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